domingo, 5 de junho de 2022

Análise de discurso - Martin Luther King - I have a dream

 



A crescente tensão racial das décadas de 50 e 60, advinda de inúmeros conflitos causados pelo desejo de igualdade da comunidade americana negra, martirizada pelo racismo profundamente enraizado, faz com que surjam grandes líderes pelos direitos civis. O mais representativo nome deles é Martin Luther King, que forjou sua liderança inspirado em conceitos como a desobediência civil e a não-violência, bastante em voga por conta da popularidade de Mahatma Ghandi à época.

Martin Luther encabeça diversos protestos pacíficos, sendo o historicamente mais representativo chamado de "A Marcha de Washington", que arrasta multidão estimada em torno de 250 mil pessoas. É dentro deste contexto de ebulição pela igualdade racial que Martin Luther declama seu discurso "I have a dream" - Eu tenho um sonho.

Performance do orador


Dotado de uma autoconfiança inabalável, Martin Luther domina a arte de falar bem - qualidade imprescindível para que se tenha excelente oratória, com textos verbalizados em crescentes de eloquência perfeitamente casados com o desdobramento emocional também crescente do significado de seu texto. Conforme  cada linha de raciocínio se aproxima de sua conclusão, mais  a entonação fica forte, reforçando o significado do que ele comunica. Além disso, sua perfeita dicção e pronúncia contribuem para que não haja prejuízos ao entendimento.

O texto declamado é conciso e coerente, com excelente continuidade, progressão e articulação, sem contradições, o que facilita sua assimilação. Martin Luther tem pleno domínio linguístico, com uso correto de recursos gramaticais, palavras e expressões e linguagem formal, para reforço de sua autoridade sobre o tema. Além disso, seu domínio pragmático e extralinguístico é excelente, já que ele é hábil em relacionar o contexto ao texto.

Sobre a expressão corporal de Martin Luther, pode-se observar que ele se mantém em postura ereta, com cabeça erguida, trajado com terno e gravata - código de vestimenta que o identificava como sendo letrado e culto – ou seja, transparecendo através do código não-verbal um reforço do significado do texto oral: ele quer poder andar de cabeça erguida, poder ser tratado de igual para igual, com plena autoestima por ser o que é. Com essa postura e com essa vestimenta ele diz: "eu sou igual, eu não sou menor".

Formação do vínculo

Martin Luther lidera uma manifestação e declama um discurso em que ele tem lugar de fala e aparenta estar plenamente convicto do que diz; ele é tão afetado pelo racismo quanto qualquer um dos que ouvem seu discurso. Essa estreita relação  permite a criação do sentimento de empatia entre receptor e emissor. Essa formação de vínculo é intencionalmente reforçada quando Martin Luther intitula seus receptores como "meus amigos", ou seja, "meus iguais". Com esse forte canal de identificação emocional aberto e reforçado, fica muito mais fácil absorver com intensidade cada palavra dita por Martin Luther, como se aquele texto tivesse sido escrito exclusivamente para cada um. 

Diante de sua vivência  e de seu entendimento profundo sobre a verdade do que está verbalizando, ele consegue transparecer grande convicção, o que ajuda o público a entender que aquilo que está sendo dito é uma verdade inquestionável

Para extrapolar a esfera de seu estrato social e atingir um público ainda mais amplo, que precisa também ser tocado pela ideia da igualdade defendida ali, ele busca comparar o sonho da igualdade racial ao próprio sonho americano, o sonho que todo americano sonha - seja ele branco ou negro. 

Através de um encadeamento lógico espetacular, Martin Luther prova que o sonho americano só pode ser verdade caso o sonho da igualdade racial antes seja tornado realidade. E ele toma o cuidado de não hostilizar a parte então dominadora da sociedade; ele busca citá-la em diversos pontos do discurso como igual: à mesa, de mãos dadas, frequentando os mesmos locais. Ele busca separar o racismo do racista, utilizando a linha de raciocínio de que se deve culpar o pecado, não o pecador

Mensagem

Martin Luther trabalha de forma genial o antagonismo entre a situação atual que aquele público vivencia - o "hoje", a "realidade" de extrema discriminação - com o desejo inato que todo ser humano tem de viver em paz, de ser reconhecido como um igual, de poder viver em um ambiente de justiça social e racial - o "amanhã", o "sonho". 

Ao iniciar cada novo tópico do discurso pela célebre frase "Eu tenho um sonho", o canal de empatia ali aberto fez com que todos os ouvintes acabem por sentir que têm o mesmo sonho. Assim, o sonho de Martin Luther revela-se ser o sonho de todos. Essa forma de comunicar faz com que seu discurso seja muito mais envolvente, e, por consequência, mais persuasivo.

Figuras de linguagem

Ele se utiliza diversas figuras de linguagem para enriquecer o significado de sua mensagem, fazendo com que seu texto dialogue com o emocional de cada ouvinte, o que possibilita a formação de significados imensamante maiores do que se o texto fosse planejado para ser uma mera comunicação de fatos. Algumas figuras de linguagem identificadas:

1. Metáforas

Grande parte do texto é baseado em metáforas. E não por acaso; através de metáforas, o significado do texto é expandido para a interpretação emocional, muito particular de cada receptor. Algumas delas:
- Mesa da fraternidade;
- Calor da injustiça;
- Montanha do desespero;
- Pedra de esperança;
- Lábios gotejando palavras de intervenção e negação;
- Sino da liberdade.

2 Antíteses metafóricas

Para trazer ênfase ao que está errado e como deve ser o acerto. É o que ocorre nos seguintes trechos:
-  Um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo;
- Os lugares ásperos serão aplainados;
- Os lugares tortuosos serão endireitados;
- Cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança;
- Transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade.

3. Eufemismos

Como "Transpirar com o calor da opressão" no lugar de discorrer sobre os crimes que aconteceram no Mississipi.

4. Catacreses

Como em "Oásis" para representar um local bom.

Recursos de construção / sintaxe

Recursos de construção / sintaxe usados por Martin Luther e que corroboram o melhor entendimento do texto:

1. Gradação

progressões em forma crescente, como em "Quando nós permitirmos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia"

2. Pleonasmo

Repetições intencionais realizadas com as seguintes palavras / expressões:
Sonho: em diversos pontos do discurso e uso de termos redundantes como "racistas malignos".
- Meninos/meninas: no trecho da frase "meninos negros e meninas negras poderão se unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos", que  reforçam a igualdade e o vínculo entre eles.
- Juntos: em "nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir para a cadeia juntos, defender liberdade juntos, rezar juntos, lutar juntos" para reforçar sua intenção de unificar o país;
- Ouvirei sino da liberdade: para sinalizar que seu sonho é que o país inteiro seja um país livre em "E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire. Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas de Nova York. Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania. Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee. Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi. Em todas as montanhas, ouvirei o sino da liberdade.".
- Livre/Afinal: quando Martin Luther conclui seu discurso com um fecho vitorioso, ele ali utiliza-se novamente do pleonasmo e também da metalinguagem, já que no final do texto, ele além de repetir “livre” – ser livre é o grande objetivo do discurso e ali isso é enfatizado - ele também repete intencionalmente “afinal”, repetição essa que reforça o momento final de seu discurso, além, é claro, de estar falando de um objetivo final: "Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal.".